quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Autoridade e limite

Autoridade e limite


Yves de La Taille, do instituto de Psicologia da USP

É muito comum ouvirmos falar sobre a importância de se impor “limites” às crianças, e que pais e professores, muitas vezes, falham nessa tarefa. A questão é delicada.

A rigor, dizer que “limites” devem ser impostos às crianças é contentar-se com formulação vaga. Formulação esta que pode, para alguns saudosistas da época em que crianças não deveriam querer, e sim obedecer, dar justificativas para se anularem todos os avanços pedagógicos realizados nos últimos tempos. Dita de outra forma, a expressão “ impor limites” possibilita, legitimar práticas despóticas, através das quais a criança é vista como apêndice da família, parte menor, a quem cabe obedecer às ordens “superiores”, mesmo aquelas não pautadas no respeito ao ser humano. Então, devemos ser parcimoniosos com a expressão em tela. “Impor limites” significa, em linguagem mais técnica, fazer com que a criança tenha suas condutas pautadas em algumas regras ou normas. Portanto, duas perguntas no mínimo impõem-se: 1. Que regras são estas (que limites)? 2. Devem ou não ser “impostas”?

1. Que regras?

O psicólogo tem pouca coisa a dizer neste item. De fato, a escolha das regras é, na maioria dos casos, valorativa. Há algumas óbvias, relacionadas à sobrevivência da criança, como por exemplo, regras de higiene. No entanto, há outras discutíveis, notadamente aquelas da alçada da moralidade. Uma coisa é certa: se os próprios pais não sabem direito o que é correto e o que é errado, dificilmente poderão educar moralmente seus filhos. Porém, se eles valorizam algumas normas, deverão, basicamente, se perguntar: são justas, ou são, simplesmente, inspiradas pela intolerância em relação a certas tendências infantis? Ou são, ainda, baseadas no simplório “respeito pelos mais velhos”? Forma de muitos adultos compensarem, em casa, seu déficit cotidiano de auto-estima. O fato é que, mesmo antes de poderem formular critérios para avaliar o que é justo e o que não é, as crianças são muito suscetíveis às injustiças. É por essa razão que crianças pequenas têm simpatia por adultos severos, mas justos, e não gostam daqueles benevolentes, cuja linha de ação é, no fundo, egoísta e, portanto, injusta.

Sem entrar mais profundamente no mérito de quais regras escolher, pode-se afirmar que a criança precisa delas, por dois motivos essenciais. O primeiro: o convívio social exige que haja regras, do contrário não há coordenação possível nas condutas dos membros de determinada sociedade. Desta forma, deixar crianças sem regras, é correr o risco de fazer com que se tornem adultos egocêntricos, incapazes de dialogar e cooperar com os outros. Alias, lembremos que tal capacidade de cooperação já é necessária durante a infância. O segundo: as regras “canalizam desejos”. Contrariamente ao que se pode pensar, é uma tirania deixar à criança a responsabilidade de sempre escolher, segundo motivações e desejos pessoais, o que é bom para ela. A sociedade é muito complexa e a criança precisa – e quer – de uma mão guia para entrar neste emaranhado de valores que é a cultura. Esperar que espontaneamente ela saiba se situar perante seus semelhantes é profundo engano. É abrir mão do dever de cada geração educadora: levar a criança ao que o mundo é, para que, depois, ela possa transformá-lo.

Evidentemente não estou, em absoluto, propondo que os desejos da criança nunca sejam ouvidos e contemplados; estou, apenas, apontando para possíveis exageros que exigem da criança decisões que ela ainda não pode tomar por falta de conhecimento acerca do mundo e de si mesmo.

Em resumo, crianças precisam sim, aderir a regras (que implicam valores e formas de conduta) e estas, somente podem vir de seus educadores, pais ou professores. Os “limites” implicados por tais determinações não devem ser, apenas, interpretados no sentido negativo: o que não pode ser feito ou ultrapassado. Devem, também, ser entendidos no sentido positivo: o limite situa, dá consciência da posição ocupada dentro de algum espaço social – a família, a escola e a sociedade como um todo.

2. Devem as regras ser “impostas”?

Embora de conotação um pouco violenta, o verbo “impor” justifica-se, antes de mais nada, por uma questão de honestidade: as regras que se pretende que as crianças sigam provêm do mundo adulto, portanto não são criadas ou eleitas espontaneamente por elas. Elas são impostas: a palavra é esta. Deve-se ter cuidado com certas práticas educativas que, de forma escondida, procuram “seduzir” a criança e fazê-la chegar “livremente”, por “livre e espontânea vontade” a comportamentos decididos de antemão pelo adulto. Pensando-se, especialmente, em crianças pequenas (até seis, sete anos, em média), as regras também devem ser impostas em outro sentido, embora devam ser racionalmente explicadas (nunca a frase: “faça isso
porque eu quero” ou “porque sim”), não podem ser “negociadas”. Devem ser imperativas. Evidentemente, é preciso bom senso: algumas regras até podem ser negociadas ou simplesmente escolhidas pelas crianças (que também gostam de tomar decisões). Mas pensando naquelas essenciais, senão corresponderem a limites preciosos, a “terra firme”, aparecerão apenas como vagas balizas, como bóias no mar.

Se a criança observar que as regras, às vezes valem e às vezes não, se reparar que, pelo cansaço dos pais ou professores os limites podem ser ultrapassados ou deslocados, logo aprenderá a manipular as normas e seduzir seus atores para que as esqueçam. Em uma palavra: quem impõe as regras deve ser visto como autoridade, condição necessária para que, justamente, sejam aceitas. Se a regra é boa, não se tem porque viver sua imposição com culpa; pelo contrário, é o ato de “cuidar do outro”, de amor, portanto.

Porém, há mais uma condição necessária para ser autoridade legitimada: comportar-se coerentemente com as regras impostas, impor as regras a si próprio, (claro se não estivessem relacionadas, apenas, a aspectos típicos da vida infantil, como o horário de dormir, por exemplo). A criança – e acredito, a maioria das
pessoas – precisa de exemplos “encarnados” dos valores pregados. Se eles não forem.vistos como referentes a condutas humanas possíveis e concretas, permanecerão demasiadamente abstratos. A criança precisa de modelos, não tanto para copiá-los, mas sobretudo, para certificar-se de que o que lhe dizem é passível de ser materializado numa figura humana. Volto, portanto a insistir: impor certas regras à criança implica impô-las a si próprio.

(Adaptação)

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